Entre o Céu e o Silêncio

 

Entre o Céu e o Silêncio

Autor: Rapha Reis

Edição e Diagramação: Rapha Reis

Gênero: Romance| Cristão | Literatura Brasileira






Introdução – Onde a fé se cala

Dizem que a morte ensina, mas ninguém avisa o quanto ela cobra para ser professora. A perda chegou como um assalto — sem aviso, sem compaixão, sem explicação. Bastou um telefonema, e o mundo, antes ruidoso e cheio de planos, mergulhou em um silêncio seco. Não o silêncio da paz, mas o do desespero. Aquele que rasga por dentro e cala até as orações.

Naquele instante, ela não pensou em Deus. Pensou em gritar. Pensou em desaparecer. Sentiu o corpo tremer, o coração correr e, ao mesmo tempo, parar. O tempo parou. Tudo perdeu a cor, o sentido, o sabor. A vida, de repente, parecia uma fotografia amarelada, onde o presente era apenas o eco de algo que se foi.

Ela amava. E o que se foi era mais do que uma pessoa. Era o laço, o afeto, os planos. Era a lembrança de mãos dadas no meio da rua, a risada que ecoava pela casa, o café preparado com cuidado nos dias difíceis. Era o tipo de amor que preenche o mundo sem precisar de palavras. E, agora, havia apenas ausência.

Mas o luto não é só a ausência do outro. É a ausência de si. De repente, ela não sabia mais quem era.

Ela tentava orar, mas as palavras não vinham. Sentia culpa por isso. Como pode uma mulher de fé não encontrar forças nem para falar com Deus? O mesmo Deus que ela sempre serviu, sempre confiou. Agora parecia distante, quase estranho. Como se estivesse ali, mas de costas.

Ela não perdeu apenas um marido. Perdeu também a identidade de esposa, o reflexo dos dois no espelho do futuro, a segurança de acordar todos os dias sabendo que havia alguém ali, incondicionalmente. A dor era dupla: a da saudade que machuca e a do medo de viver sozinha, sem chão, sem direção. A sensação era de que o mundo todo seguia em frente, mas ela havia ficado presa em um mesmo dia, repetido mil vezes.

E é nesse ponto da história que o céu e o silêncio se encontram. Quando tudo parece perdido, mas algo — algo que ainda não tem nome — começa a se mover dentro da dor.

Essa história não é sobre a morte. É sobre o que vem depois.


Capítulo 1 – Quando Tudo Para 

A primeira coisa que ela percebeu, após a notícia, foi que o som desapareceu. Não apenas o barulho da rua, da televisão ou dos passos da casa. Foi o som da vida.

Ela se trancou no banheiro porque precisava gritar, mas o grito não saía. Chorava como quem sangra. Encolhida, abraçando os próprios joelhos, como se pudesse se esconder do que tinha acontecido.

A morte chegou rápido. Um acidente. Uma curva mal feita. Um instante que levou embora o homem que ela amava há dezessete anos. Não deu tempo de despedida. Nem de um último “eu te amo”. Ela sentiu como se tivesse sido arrancada de si mesma, jogada em um mundo que não reconhecia.

Nos dias seguintes, ela viveu no piloto automático. Recebeu pessoas. Aceitou abraços. Agradeceu orações. Mas por dentro, estava morta. Era como se o corpo funcionasse sozinho, enquanto a alma permanecia em coma. Dormir era um alívio e um castigo. Quando acordava, o choque voltava como uma marreta no peito: ele não está mais aqui.

Ela deixou de se arrumar. Esqueceu de comer. A fé que antes era prática, viva, se tornou um caco de vidro atravessado na garganta. Ela sentia raiva de Deus, embora não soubesse como expressar isso. Tinha vergonha de duvidar, vergonha de sentir tudo aquilo. Mas era real.

Começou a evitar as pessoas. A igreja, então, virou um lugar impossível. Como entrar ali e fingir louvor se sua alma só sabia lamentar? Como cantar sobre promessas, se a maior promessa da sua vida — de construir uma família, envelhecer juntos, ver os netos correndo — foi arrancada dela num piscar de olhos?

Ela se lembrava com detalhes do último abraço. De como ele havia saído apressado, sorrindo, como sempre fazia quando tentava disfarçar o cansaço. De como ela havia respondido com um beijo rápido, achando que teria a noite inteira para se aproximar de novo. Ela não sabia que aquela seria a última vez.

E o que fazer com isso? Com essa última vez que nunca se planeja?

Ela sentia falta até das pequenas irritações — do jeito que ele esquecia a toalha em cima da cama, do rádio alto no carro, da mania de colocar açúcar demais no café. A ausência era mais cruel porque invadia até os detalhes que ela achava que não importavam.

Não havia nada que a preparasse para aquilo. Nem sermões, nem livros cristãos, nem canções de adoração. A dor era maior que o entendimento. E quanto mais ela tentava buscar respostas, mais parecia se afogar na falta delas.

Havia dias em que ela tentava conversar com Deus. Mas tudo o que conseguia era chorar. E chorar. Às vezes em voz alta, às vezes só por dentro. Até que uma noite, sozinha na sala, ela disse algo simples, mas verdadeiro:

“Senhor... se ainda estás aqui, me ache. Porque eu não consigo mais Te encontrar.”

Foi a primeira oração honesta em semanas. Não foi bonita, nem bíblica. Mas foi real.

Naquele instante, ela não ouviu uma voz do céu. Nenhuma luz brilhou na janela. Mas, pela primeira vez, o choro foi diferente. Foi como se algo a tivesse escutado. Como se o céu, mesmo em silêncio, tivesse aberto uma pequena fresta.

Não havia alívio. Mas havia espaço para respirar.

E isso foi o começo.


Capítulo 2 – O Quarto Ainda Tem o Cheiro  Dele

Ela evitou entrar no quarto por dias.
Passava pelo corredor apressada, desviando o olhar, como quem foge de um lugar sagrado e ao mesmo tempo maldito. Mas naquela manhã — talvez pela saudade, talvez pela necessidade de tocar o impossível — ela girou a maçaneta com a mão trêmula e empurrou a porta devagar.

O quarto ainda cheirava ele.

Era um cheiro impossível de descrever, mas inconfundível: uma mistura de colônia leve com o sabão da camisa social que ele usava todo dia, do travesseiro amassado com o toque da pele dele, da vida compartilhada em cada detalhe daquele lugar.

Ela respirou fundo e o peito doeu. Não de saudade apenas, mas de um tipo de vazio que não tem fundo. Caminhou até a beirada da cama como quem pisa em solo sagrado. Tocou o lençol com a ponta dos dedos. Ainda havia um vinco ali, onde ele costumava se deitar. A impressão do corpo dele parecia estar marcada no tecido — ou talvez fosse só sua imaginação pedindo socorro.

Sentou-se devagar, com o cuidado de não desfazer nada, como se tivesse medo de apagar os últimos vestígios da presença dele. Em cima do criado-mudo, o relógio que ele usava estava no mesmo lugar. Ela o pegou, passou os dedos sobre o vidro e chorou — como quem segura o tempo e percebe que ele nunca foi seu.

Ali, naquele quarto, não havia mais voz. Mas havia eco.

Fechou os olhos e foi levada pelas lembranças.
De repente, estavam rindo juntos, enrolados nos lençóis num sábado chuvoso, dividindo café e conversas bobas. Ele a chamava de “minha menina”, mesmo depois de tantos anos. Quando brigavam, ele se desculpava antes — às vezes só com um bilhete ou um chocolate na cozinha. Eles não eram perfeitos, mas tinham um jeito de amar que era só deles: cheio de simplicidade, presença e verdade.

Como se sobrevive depois de perder esse tipo de amor?

Ela se jogou de lado na cama e enterrou o rosto no travesseiro dele. Inspirou fundo, como quem queria absorver o que ainda restava dele no mundo físico. Foi ali que a dor bateu mais forte. Um soluço profundo, rasgado, que veio do lugar onde mora a alma.

“Por que, Deus?” — sussurrou, com a voz embargada — “Por que tirar ele de mim?”

E, mais uma vez, o céu parecia mudo.
Era como na infância, quando tinha medo do escuro e chamava pelos pais, mas ninguém vinha.
A única diferença é que agora o escuro estava dentro dela.

Lembrou-se da avó, mulher de fé firme, que a levava pela mão todos os domingos à igreja. “Mesmo quando Deus está em silêncio, Ele está ouvindo, minha filha”, dizia. E, naquela hora, essas palavras ecoaram com um gosto agridoce. Porque ela queria acreditar. Mas como? Como confiar em um Deus que permite um amor ser arrancado com tanta brutalidade?

Foi então que teve coragem de abrir a gaveta dele.

Ali estavam os documentos, o relógio velho de corda que ele não usava mais, uma carta que ela havia escrito no aniversário de casamento dois anos atrás. Ele guardava. Ela nem lembrava da carta, mas ele guardava.

Sentiu uma mistura de dor e gratidão. Porque, mesmo em meio ao sofrimento, ela sabia: o amor deles tinha sido real. E isso ninguém tiraria dela.
Mas havia outro sentimento se formando — algo que ela não sabia nomear, mas que talvez fosse fé cansada. Aquela fé que não brilha, mas também não apaga. A fé que continua ali, mesmo tropeçando, mesmo enfraquecida, como uma chama miúda resistindo ao vento.

Ela se levantou, pegou uma camiseta dele e a apertou contra o peito.
Desceu até a sala e sentou-se no sofá. Estava exausta, emocionalmente drenada. E ali, sem força para orar, ela apenas murmurou:

“Senhor… eu não entendo. Mas se Tu ainda estás comigo, fica aqui. Só fica.”

E pela primeira vez, não esperou resposta.
Não exigiu explicação.
Apenas permitiu que Deus fosse o que fosse — silêncio, consolo, ausência, presença.

Naquela manhã, o céu não respondeu com palavras, mas com um pequeno gesto: ela respirou.
E, pela primeira vez em muito tempo, aquele ar parecia menos pesado.

Ainda doía. Ainda faltava tudo.
Mas o quarto cheirava ele.
E ela escolheu acreditar que, de alguma forma, esse amor ainda a alcançaria — não mais no toque, mas na lembrança.
Não mais na companhia, mas na essência.
E talvez, só talvez, Deus estivesse mesmo ali. No silêncio. No cheiro. No fôlego.


Capítulo 3 – A Dor Tem o Seu Tempo

No início, todos estavam por perto.

Os amigos ligavam todos os dias, apareciam com comida, tentavam arrancar dela um sorriso forçado com palavras bem-intencionadas. A igreja enviou flores. A vizinha da frente se ofereceu para dormir lá nas primeiras noites. E ela, encharcada pela dor, aceitava tudo em silêncio — sem força para agradecer, sem vontade de conversar.

Mas bastaram algumas semanas para o mundo voltar à sua velocidade normal. E foi então que ela começou a se sentir verdadeiramente sozinha.

A vida dos outros andava. As redes sociais mostravam aniversários, viagens, risos. As conversas retomavam seus assuntos de sempre. E, vez ou outra, alguém soltava um comentário que a feria mais do que um golpe:

“Você precisa reagir…”
“Ele não iria querer te ver assim…”
“Você tem que seguir em frente…”

Como se houvesse um manual.
Como se o amor tivesse data de validade.
Como se fosse possível levantar da morte de um amor com um simples “amém”.

Ela aprendeu rápido que a dor assusta. Que o luto incomoda. Que nem todos suportam conviver com o silêncio de quem perdeu.

E então começou a se calar.

Guardou a tristeza no peito como quem guarda joias: não por apego, mas por proteção.
Porque a dor dela era sagrada. Era parte do amor. E ninguém mais parecia disposto a respeitá-la.

Foi nessa fase — a do abandono disfarçado — que ela começou a repensar sua fé.

Não que tivesse deixado de crer. Mas já não sabia como crer do mesmo jeito.

O Deus que ela conhecia era o Deus das promessas, dos milagres, das canções de vitória. Mas e o Deus do luto? Onde Ele ficava quando a oração não evitava o pior?

Ela se perguntava isso todas as noites, enquanto olhava para o teto do quarto escuro.
E foi durante um desses momentos, quase sem querer, que ela lembrou de uma frase da infância: “A dor tem o seu tempo.” Era sua mãe quem dizia, quando a avó faleceu. “Filha, a dor tem o seu tempo. E o consolo também.”

Na época, ela achou que era apenas consolo de mãe. Agora, aquelas palavras ganhavam um peso novo. Sim, a dor tinha seu tempo. E ela não seria apressada por ninguém. Nem mesmo por si.

Naquela semana, pela primeira vez, ela saiu de casa sozinha.

Foi ao mercado. Caminhou pelas prateleiras como quem atravessa um campo minado — cada corredor escondia uma lembrança. O cereal que ele gostava. O suco que ele sempre esquecia de comprar. O perfume que ela usava só para ele. Tudo dizia “ele” sem dizer.

Quando chegou no caixa, uma senhora atrás dela deixou cair uma sacola. Ela se abaixou para ajudar, e ouviu: “Você tem um olhar muito triste, minha filha.”
Ela apenas sorriu, mas, por dentro, algo cedeu.
Não era só o luto. Era o peso de carregar sozinha algo que ela ainda não tinha palavras para explicar.

Na volta para casa, passou em frente à igreja. A porta estava aberta. Havia um culto começando. Ela pensou em entrar. Ficou parada do outro lado da rua por alguns minutos, observando.
E, de repente, algo a fez chorar ali mesmo, em pé, sozinha:
Foi a canção.
“Descansa no Senhor… e Ele tudo fará…”

Ela não entrou. Ainda não tinha coragem. Mas naquele momento, pela primeira vez, a letra de uma canção não a irritou. Pelo contrário. Tocou uma corda que estava esquecida.

Ao chegar em casa, fez uma oração curta, com a alma ainda tremendo:

“Deus… eu não consigo apressar minha cura.
Mas se o Senhor ainda estiver aí… não me deixa morrer por dentro.”

Ela não esperava resposta.
Mas aquela noite foi a primeira em que dormiu sem chorar.

E, pela manhã, quando abriu a janela, o sol entrou.
Era um dia comum. Mas o comum, agora, começava a ser reabilitado.
Um passo por vez.

A dor ainda estava lá.
Mas, naquele dia, ela soube:
Ela não estava sozinha.

Capítulo 4 – Ainda Sou Feita de Pedaços

Ela estava de pé, mas ainda não inteira.

Todo dia era uma luta entre levantar e deitar de novo. O mundo cobrava normalidade, mas ela sabia: ainda era feita de pedaços. Havia dias em que conseguia sair da cama, fazer café, escutar um louvor, até sorrir para a vizinha. Mas havia outros em que tudo o que conseguia era sentar-se no chão do banheiro, abraçada às próprias pernas, tentando lembrar como era viver sem dor.

A reconstrução não é bonita. Nem limpa. Ela é silenciosa, lenta, e por vezes solitária.

Ela começou a escrever em um caderno velho.
Nada planejado. Apenas palavras soltas, dores que não cabiam mais dentro dela. Às vezes eram lembranças. Outras vezes, orações desconexas. E, em alguns dias, simples desabafos como:
“Hoje tentei sorrir. Mas doeu.”
“Deus, estou com saudade dele. E de mim também.”
“Não quero que isso me defina, mas também não consigo esquecer.”

Foi nesse exercício de colocar no papel o que o coração mal compreendia que ela começou a sentir algo se mover — não do lado de fora, mas dentro. Era como se Deus estivesse lendo junto com ela. Não explicando, não respondendo. Apenas… ficando.

Certa noite, ao reler o que havia escrito durante a semana, ela se pegou pensando:
“Eu ainda estou aqui.”

E essa constatação, simples, foi poderosa.
Porque, mesmo quebrada, mesmo cheia de dúvidas, mesmo com a fé fragmentada — ela ainda estava ali. Respirando. Sentindo. Tentando.

Isso era graça.

Ela voltou ao quarto e abriu a Bíblia. Ainda com medo, ainda sem esperança de grandes revelações. Mas ali, sem procurar, seus olhos caíram sobre um versículo sublinhado com marca-texto antigo:

“O Senhor está perto dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito abatido.”
— Salmos 34:18

Ela fechou os olhos e murmurou:
“Então, Senhor… fica perto. Porque o meu coração já nem sei se é inteiro.”

Naquela mesma semana, recebeu uma visita inesperada.

Era Mariana, uma amiga de anos com quem havia perdido contato. Não era o tipo de amizade que se falava todo dia, mas havia algo genuíno entre elas. Mariana chegou com uma sacola de pão caseiro e um olhar que não exigia nada. Apenas sentou-se ao lado dela, na cozinha, e segurou sua mão.

“Eu não vim te animar. Nem te distrair. Só vim estar aqui.”

Ela não respondeu. Mas seu peito apertou em um choro calado — um agradecimento mudo por aquele tipo de presença que não tenta resolver, apenas divide o peso.

Ficaram em silêncio por um tempo, até que Mariana disse:
“Você não precisa se refazer agora. Deus não está com pressa. E Ele não vai embora só porque você está em pedaços.”

Essas palavras foram como bálsamo.

Depois que Mariana foi embora, ela ficou olhando para a xícara de café na mesa. Aquilo era só um momento comum — duas amigas dividindo silêncio — mas algo havia mudado. Não fora uma grande revelação. Nenhum milagre. Mas, pela primeira vez, ela percebeu: a presença de Deus nem sempre é um alívio imediato… às vezes, é uma companhia silenciosa no vale.

E naquele vale, ela ainda era feita de pedaços. Mas, pela primeira vez, não tinha mais vergonha disso.

Naquela noite, ela escreveu no caderno:
“Sou cacos. Mas estou sendo recolhida. Devagar. E, talvez, seja exatamente assim que Deus me quer agora: quebrada, mas sincera.”


Capítulo 5 – Quando a Fé não Cura, Sustenta

Ela passou boa parte da vida acreditando que fé era uma espécie de remédio. Que bastava orar, jejuar, declarar — e Deus faria. Que o agir dEle se manifestava no milagre, na cura, no livramento. Ela cria nisso com sinceridade. Nunca duvidou do poder do Altíssimo. Mas agora, ali, com a dor ainda sangrando no peito, começava a perceber outra face de Deus. Uma que não vinha com respostas, mas com presença.

Não foi uma revelação de uma vez. Foi um despertar gradual, como quando os olhos se acostumam à luz depois de muito tempo no escuro.

Ela percebeu isso enquanto lavava a louça, sozinha, num dia comum.

As mãos mergulhadas na água, o rádio ligado em um louvor antigo, e de repente a letra dizia:
“Mesmo que eu não veja, sei que estás agindo...”

Ela parou.
Sentiu um nó na garganta.
Porque, de fato, não via nada. Mas havia algo ali.
Talvez fosse fé.
Talvez fosse só sobrevivência.
Ou talvez os dois fossem, na verdade, a mesma coisa.

Desde que tudo aconteceu, ela esperava por uma cura.
Esperava acordar um dia e não sentir mais dor.
Esperava que o vazio se preenchesse, que o coração parasse de doer, que a fé voltasse inteira.
Mas não aconteceu assim.

O que aconteceu foi diferente — e mais sagrado:
Ela aprendeu a continuar mesmo ferida.
E entendeu, com o tempo, que fé não é uma anestesia. É uma força que sustenta o corpo mesmo quando a alma está em ruínas.

Nos cultos que começou a assistir online — ainda sem coragem de voltar para a igreja — ouvia pastores pregando sobre vitória, restituição, dupla honra. Mas, para ela, a maior vitória naquele momento era conseguir acordar, tomar banho, arrumar a cama, respirar. E, para sua surpresa, começou a perceber que isso também era espiritual. Que Deus não estava apenas no púlpito, mas também no chão do quarto, quando ela dizia: “Eu não aguento mais” — e mesmo assim se levantava.

Uma noite, com os olhos fixos no teto, ela falou com Deus em voz alta, sem script:

“Eu sei que o Senhor pode me curar. Mas, se não for hoje… só me ajuda a continuar.”

Era essa a fé que restava.
Não triunfante.
Não vistosa.
Mas viva.

E Deus começou a se revelar ali — na fraqueza.
Como Aquele que não a cobrava por ser forte, mas que se sentava ao seu lado quando ela estava fraca.

Ela lembrou de uma vez, anos atrás, quando caiu na rua e machucou o joelho. Tinha sete anos. Chorava tanto que mal conseguia explicar o que sentia. E sua mãe não fez sermão, nem perguntou como ela não viu o buraco. Apenas a pegou no colo, beijou o machucado e disse: “Vai doer um tempo, mas eu tô aqui.”

Era exatamente assim que ela sentia Deus agora.
Ele não explicava.
Ele não impedia a dor.
Mas Ele estava.

E isso, de algum jeito que ela não conseguia explicar, era mais curador do que qualquer milagre.

Ela voltou ao caderno naquela noite e escreveu:

“Talvez a fé que mais agrada a Deus não seja a que levanta os mortos, mas a que continua mesmo com o coração enterrado.”

Porque fé, ela entendeu, não era o fim da dor.
Era a companhia de Deus dentro da dor.
E esse tipo de fé… sustentava.


Capítulo 6 – Ainda Existe Beleza nas Ruínas

Ela não soube dizer exatamente quando aconteceu, mas, de repente, percebeu que estava respirando com mais leveza.

Ainda doía. Ainda havia dias em que chorava sozinha no quarto, deitada do lado esquerdo da cama, onde ele costumava dormir. Ainda havia manhãs em que o silêncio da casa parecia maior do que o mundo. Mas havia, também, outros momentos. Novos. Surpreendentes.

Teve uma tarde em que saiu para comprar pão e, sem perceber, ficou observando o céu por alguns minutos. O azul estava limpo, quase sem nuvens. E, ali, com uma sacola na mão e os olhos cheios de luz, ela sentiu algo que há muito tempo não sentia: paz. Não a paz triunfal das vitórias anunciadas, mas uma paz tranquila, tímida, quase infantil — como se Deus estivesse dizendo: “Eu ainda estou aqui. Mesmo que tudo esteja diferente.”

Ela começou a caminhar no fim das tardes. Não por obrigação, mas por necessidade de respirar. Às vezes, saía sem rumo. Outras vezes, passava pelas ruas onde costumavam andar juntos. Doía, mas também curava. Porque cada passo parecia uma conversa. Cada esquina, uma memória. E, aos poucos, ela foi percebendo que as lembranças não a feriam mais como antes. Algumas, inclusive, a faziam sorrir.

Em uma dessas caminhadas, parou diante de uma árvore florida. Estava tão linda que ela tirou uma foto com o celular. Era só uma árvore. Mas, naquele dia, parecia uma resposta.

Porque ali, em meio ao cenário comum, havia beleza.
E ela, que por tanto tempo só enxergava cinza, viu cor.

Não era alegria. Ainda não. Mas era gratidão.

Gratidão por ainda estar aqui.
Por não ter desistido.
Por Deus não tê-la deixado, mesmo quando ela quase deixou a si mesma.

Começou a limpar a casa aos poucos. Retirou as roupas dele do armário — não como quem quer apagar, mas como quem aceita que o tempo também se move. Guardou algumas peças em uma caixa. Doou outras. Chorou. Abraçou o tecido. Mas, no final, sentiu-se mais leve.

Não estava esquecendo. Estava acolhendo.
Era como se dissesse ao próprio coração: “Você pode guardar o amor sem carregar o luto para sempre.”

Ela voltou à igreja. Sentou-se no fundo. Não falou com ninguém. Mas, quando o louvor começou, não sentiu mais revolta. Sentiu falta. Sentiu desejo.
Levantou as mãos devagar. Não para demonstrar força, mas como quem se rende ao cuidado de um Pai que nunca a soltou — mesmo quando ela achou que estava sozinha no escuro.

E, naquele gesto, soube:
Ainda existia vida.
Ainda existia fé.
Ainda existia beleza.

Mesmo nas ruínas.

Porque, às vezes, a alma da gente não precisa ser reconstruída de uma vez.
Às vezes, ela só precisa florescer onde foi quebrada.


Capítulo 7 – O Cuidado Vem em Forma de Gente

Ela sempre soube que Deus podia agir de muitas formas. Mas nunca imaginou que Ele escolheria gente comum para segurar sua mão nos dias mais escuros.

Foi percebendo isso aos poucos, sem grandes acontecimentos. Começou com Mariana, que aparecia com frequência sem avisar, só para tomar um café. Às vezes falava muito, outras vezes ficava em silêncio. E era justamente isso que a curava: a liberdade de não precisar fingir estar bem.

Certa manhã, Mariana levou um bolo recém-assado. Colocou na mesa, sorriu e disse:
“Eu sei que você ainda tá no vale, mas tô aqui pra caminhar do seu lado. Nem que seja no seu ritmo.”

Aquela frase não era um versículo. Não vinha com promessas de restituição ou “dias melhores”. Mas foi como um abraço na alma. Porque, mais do que palavras, ela precisava de presença. E Mariana estava sendo isso: presença.

Logo depois, outras pessoas começaram a reaparecer.
Uma vizinha que batia no portão com pão quentinho. Um irmão da igreja que a cumprimentava com respeito, sem invadir seu tempo. Uma prima distante que mandava mensagens simples como: “Hoje orei por você.”
Coisas pequenas. Mas, para ela, imensas.

Começou a perceber que o cuidado de Deus não vinha só do céu. Vinha dos lados também.

Era um recado silencioso:
“Você não precisa se curar sozinha.”

Ela se lembrou, então, de como sempre foi ela quem cuidava dos outros.
Nos tempos bons, era a primeira a preparar comida quando alguém perdia um parente. Era conselheira de amigas, apoio da família, mão estendida no ministério da igreja. Mas, agora, era ela quem precisava. E aceitar isso não foi fácil.

Foi num fim de tarde que entendeu o que era quebrantamento.

Sentada no sofá, ao lado da irmã mais velha, que veio passar alguns dias com ela, ouviu uma frase que desmontou suas defesas:

“Você sempre achou que ser forte era não precisar de ninguém, né? Mas às vezes, força é deixar que alguém te ajude a levantar.”

Ela chorou. Chorou com o rosto escondido nas mãos.
Porque sabia que era verdade.
Porque estava cansada de parecer firme, quando tudo dentro dela estava desmoronado.

Naquele dia, aceitou ajuda sem vergonha.
Aceitou oração. Aceitou companhia. Aceitou um colo.

E, naquela entrega, percebeu algo novo:
Deus não estava apenas em cima, olhando para ela.
Estava ao redor, agindo através de cada gesto de amor.

A fé começou a crescer de novo. Não como antes, cheia de certezas. Mas mais humana. Mais sensível.
Ela entendeu que a vida com Deus não era feita só de milagres e montes altos. Era feita também de amizades sinceras, de abraços demorados, de silêncio respeitoso, de conversas no portão.

Era feita de gente.

E, naquele novo jeito de crer, ela se viu florescendo — não apesar dos outros, mas com os outros.

O cuidado de Deus tem cheiro de café fresco, voz de amiga fiel, mãos que lavam a louça sem perguntar, risadas discretas em meio à dor.

E ela, agora, sabia disso.
Não estava sozinha. Nunca esteve.


Capítulo 8 – O Amor não Acabou

Ela passava a vida acreditando que amor era presença. Que só existia enquanto o outro estivesse ali: no toque, na voz, na rotina. Mas a dor da perda mostrou outra verdade — dolorosa e, ao mesmo tempo, libertadora: o amor não morre. Ele se transforma.

Foi numa manhã de domingo, enquanto organizava uma gaveta que há meses evitava, que encontrou uma caixa com fotos.
Eles jovens, sorrindo. Na praia. No sofá da primeira casa. No culto de domingo com a Bíblia nas mãos. O tempo registrado em papel.

Chorou.

Mas não como antes.
Dessa vez, não chorou de desespero.
Chorou por tudo que foi bom. Por tudo o que viveram. Pelo privilégio de ter sido amada daquele jeito.

E, ali, com as mãos entre fotografias e lembranças, ela entendeu: o amor não tinha acabado. Ele havia se tornado eterno dentro dela.

Era amor quando ela lembrava de como ele cuidava dela nas crises.
Era amor quando repetia receitas que ele gostava.
Era amor quando ria sozinha ao lembrar da gargalhada boba dele.
Era amor quando se via mais forte — porque ele a fortaleceu por tantos anos.

Ela não precisava esquecer para seguir em frente.
Precisava, sim, acolher o que ficou.

Por muito tempo, achou que amar alguém que já partiu era um peso. Que isso a impedia de viver. Mas agora via diferente: o amor que permanece é a raiz que sustenta os novos galhos que virão.

Sentou-se na varanda, com o caderno no colo, e escreveu:

“A saudade ainda vem. Às vezes dói, às vezes me abraça. Mas hoje, pela primeira vez, não sinto culpa por sorrir.
O amor que vivemos foi tão verdadeiro que ainda me acompanha. E eu decidi… não é o fim. É parte do caminho.”

Essa verdade mudou algo dentro dela.

Ela voltou a olhar para o futuro com menos medo.
Talvez não soubesse ainda o que viria. Mas, agora, sabia o que levava com ela:
um amor que a ensinou, que a curou, e que, de algum modo, ainda vivia — em tudo o que ela se tornava a cada dia.

Na igreja, voltou a cantar. Com a voz ainda trêmula, mas com fé.
Na cozinha, voltou a colocar música enquanto preparava café.
Na vida, voltou a sorrir sem pedir desculpas.

E, numa oração sincera, disse:

“Senhor, obrigada pelo que eu vivi. Obrigada por quem ele foi.
Se for da Tua vontade, que o amor me encontre de novo.
Mas, se não for… já fui amada o suficiente para saber o Teu cuidado.”

Era o início de algo novo. Não porque a dor havia passado.
Mas porque o amor agora a sustentava — não como ausência, mas como legado.

O amor não acabou.
Ele apenas mudou de lugar.


Capítulo 9 – Quando a Vida Recomeça em Silêncio

Ela não sabia quando, mas em algum momento a vida recomeçou.

Não foi num dia marcante, nem em uma ocasião especial. Não houve discurso, revelação ou sensação arrebatadora. Foi no simples. No silencioso. No sutil.

Foi quando acordou sem aquele peso no peito que a impedia de se mover.
Foi quando percebeu que fazia dias que não chorava ao lembrar dele.
Foi quando, pela primeira vez, olhou no espelho e se reconheceu de novo — diferente, sim, mas ainda ela.

A dor não desapareceu. Mas mudou de lugar.
Agora ela morava em um canto mais fundo, mais calmo.
Já não dominava tudo.
Era companhia, não prisão.

Ela começou a fazer planos pequenos. Coisas simples, como pintar a parede da sala, reorganizar os livros, visitar uma tia em outra cidade.
Voltou a cozinhar com gosto. A fazer anotações nos livros que lia.
Começou até a escrever um devocional — não para publicar, nem para mostrar a ninguém, mas só para lembrar a si mesma que Deus continuava ali.

Foi no silêncio da rotina que ela mais ouviu a voz de Deus.
Não audível. Não mística.
Mas real.
Na paz que invadia a casa ao entardecer.
Na brisa que soprava leve quando caminhava pelas ruas do bairro.
No abraço inesperado de uma criança na igreja.
Na música que tocava exatamente quando ela precisava.

Recomeçar não foi um ato heroico. Foi uma decisão diária.
Ela entendeu que fé não era um salto ousado.
Era um passo após o outro, mesmo sem ver o caminho todo.

E, naquele novo caminhar, ela começou a se redescobrir.
Percebeu que ainda gostava de poesia. Que ainda sonhava com viagens. Que ainda havia amor dentro dela — não apenas o que foi, mas o que poderia ser.

Um dia, sentada no banco do fundo da igreja, ouviu uma pregação sobre ressurreição.
Mas o que tocou fundo não foi a promessa de milagres.
Foi a lembrança de que Jesus ressuscitou em silêncio.
Sem testemunhas, sem barulho, sem alarde.
Apenas se levantou do túmulo e caminhou.

E ela, de certo modo, também havia feito isso.
Silenciosamente.
Passo a passo.
Com Deus ao lado, mesmo quando parecia longe.

Ela não queria mais a vida de antes.
Queria a vida nova.
Aquela que nasceu do luto, da fé provada, da dor acolhida.

Porque, agora, entendia:
Recomeçar não é esquecer.
É se permitir viver de novo — com marcas, com memória e com mais misericórdia.

E no silêncio da sua casa, com a xícara de café nas mãos, olhou pela janela e disse baixinho:

“Obrigada, Deus. Pela dor que não me destruiu.
Pela vida que recomeça sem pressa.
E por estar aqui — mesmo quando eu não percebia.”

O céu não respondeu com trovões.
Mas o coração respondeu com paz.
E era tudo o que ela precisava.


Capítulo 10 – O Céu Ainda me Espera

Ela sentou-se na varanda naquela tarde calma, com o sol se despedindo devagar no horizonte. O ar tinha um cheiro de terra molhada, e o céu pintava tons de rosa e dourado que pareciam promessas silenciosas.

Pensou em tudo que havia vivido. Nas noites sem sono, nas lágrimas, nas orações mudas. Na fé que se perdeu e foi achada de novo, pedaço por pedaço.

O céu não era mais um mistério distante.
Era um lugar de esperança — não só um destino, mas um convite para continuar amando, mesmo em meio à saudade.

Ela sorriu ao lembrar das conversas que teve com Deus, das dúvidas confessadas no escuro, da coragem de continuar mesmo sem entender tudo.

Sabia que, um dia, o reencontro viria.
E que, quando ele chegasse, não haveria dor.
Só paz.
Só amor que não se acaba.

Por enquanto, ela aprendia a viver com as marcas no peito — lembranças que eram como tatuagens da alma, eternas e cheias de significado.

Ela fechou os olhos, levantou as mãos e fez uma oração simples, mas profunda:

“Senhor, obrigado pelo amor que vive em mim.
Obrigado pela esperança que não morre.
Obrigado pelo céu que me espera — e por me segurar firme até lá.”

O vento soprou suave.
Ela sentiu, mais do que ouviu, a resposta: um silêncio que era abraço, um consolo que era presença.

Naquele instante, ela soube que não estava sozinha.
Que o céu ainda a esperava.
E que o amor, verdadeiro e eterno, jamais se vai.


Conclusão – A jornada que Continua

Entre o céu e o silêncio, ela descobriu que a dor não é um fim, mas um caminho. Que o luto não apaga o amor, mas o transforma em força. Que a fé verdadeira não é a ausência de dúvida, mas a coragem de caminhar mesmo quando o caminho está escuro.

Neste livro, vimos uma história de perda e reencontro — de lágrimas e sorrisos, de silêncio e oração. Uma história que fala diretamente ao coração daqueles que já sentiram o chão faltar, mas que também desejam encontrar um novo rumo, um novo céu, uma nova esperança.

Porque a vida, por mais difícil que seja, sempre reserva momentos de graça.
E Deus, em sua infinita misericórdia, nunca nos abandona — mesmo quando tudo parece silêncio.

Que esta leitura seja um abraço para quem precisa, um sopro de fé para quem busca, e uma luz para quem caminha na escuridão.

A jornada continua. E o céu, com seu amor eterno, ainda nos espera.

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