A Princesa que Escolheu Não se Casar
Autor: Rapha Reis
Edição e Diagramação: Rapha Reis
Gênero: Conto de Fadas| Fantasia | Literatura Brasileira
©️ Termo de Direitos Autorais
Todos os
direitos reservados.
Este
livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, locais e incidentes são
produtos da imaginação do autor ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança
com pessoas reais, vivas ou mortas, ou com eventos reais, é mera coincidência.
Nenhuma
parte deste livro pode ser reproduzida, armazenada em sistema de recuperação ou
transmitida, de qualquer forma ou por qualquer meio — eletrônico, mecânico,
fotocópia, gravação ou qualquer outro — sem a permissão prévia por escrito do
autor, exceto nos casos de breves citações usadas em resenhas ou análises
críticas.
Título: A Princesa que Escolheu Não se Casar
Autor: Rapha Reis
Ano: 2025
📚 Sumário
Prólogo      – O Sussurro Antes da
Coroa
Capítulo 1 – Três Propostas e um
Silêncio
Capítulo 2 – A Noite em Que Ela
Não Dormiu
Capítulo 3 – O Mapa da Alma
Capítulo 4 – A Floresta das Vozes
Perdidas
Capítulo 5 – O espelho que ri 
Capítulo 6 – O guardião do coração
selvagem 
Capítulo 7 – O portal esquecido
Capítulo 8 – O sim que ela
escolheu 
Epílogo      – O legado da princesa livre
Dizem que
o destino de uma princesa é escrito antes mesmo de seu primeiro choro. Antes
que abra os olhos, alguém já sonhou com o vestido que ela usará no dia de seu
casamento. Antes que fale a primeira palavra, alguém já decidiu com quem ela
deverá se casar — alguém forte, alguém nobre, alguém adequado.
Na noite
em que nasceu, o céu estava limpo e as estrelas pareciam vigiar cada gesto no
castelo real. Os anciãos chamaram de presságio. Uma criança marcada pela sorte.
Uma futura rainha, talvez até uma lenda. Mas ninguém perguntou se ela gostaria
de ser uma lenda. Ou sequer uma princesa.
Desde
pequena, ela aprendeu a sorrir mesmo sem vontade. Aprendeu a se sentar com
graça, a falar com doçura, a conter perguntas que queimavam na garganta. Uma
princesa, afinal, deve ser tudo — menos inconveniente. Ela era vista,
aplaudida, exibida. Mas dentro dela, havia uma parte que permanecia invisível
até para os próprios espelhos do palácio.
Naquele
reino, coroas vinham acompanhadas de alianças. E alianças, de compromissos que
nem sempre combinavam com o coração. Todos sabiam disso, mas ninguém ousava
questionar. Era assim que sempre fora. Era assim que deveria ser.
Ou não?
Na torre
mais alta do castelo, havia um antigo vitral que só refletia a luz da lua
quando ela estava cheia. E em noites como aquela, o vitral ganhava vida.
Ninguém além da princesa parecia perceber, mas era como se aquele vidro
encantado sussurrasse segredos do mundo lá fora — um mundo onde escolhas eram
reais, onde a liberdade tinha sabor de vento e onde ninguém dizia a uma mulher
o que ela deveria ser.
Foi numa
dessas noites que ela ouviu, pela primeira vez, o sussurro que mudaria tudo.
“Você não
precisa se casar. ”
Foi só um
pensamento. Ou talvez um eco. Mas bastou.
Na manhã
seguinte, três propostas de casamento cruzariam os portões do castelo, cada uma
mais promissora que a outra. Três destinos pré-escritos. Três caminhos
pavimentados com ouro, glória e previsibilidade. O rei sorriria, a rainha
choraria de emoção, e o povo sonharia com festas e herdeiros.
Mas ela…
ela começaria a duvidar.
Não do
amor.
Mas do
destino.
E da
obrigação de segui-lo sem perguntar por quê.
👑 Capítulo 1 – Três Propostas e um Silêncio
Naquele
dia, os sinos do castelo tocaram com uma intensidade diferente. Não era alarme.
Era anúncio. A última vez que tocaram assim foi no aniversário da princesa — um
espetáculo de luzes e bandeiras que atraiu visitantes de todos os cantos do
reino de Antárien. Mas, agora, o toque carregava expectativa. E um
pressentimento.
A
princesa despertou com o som das badaladas, ainda com o rosto afundado nos
travesseiros de linho perfumado com lavanda e alfazema. O quarto era amplo e
claro, com cortinas leves que dançavam ao sabor do vento da manhã. Mas apesar
da beleza, havia um silêncio incômodo, como se algo não estivesse onde deveria.
Ela se
chamava Elara. Nascida sob a luz da lua cheia e criada para ser o orgulho do
reino. Com cabelos cor de cobre dourado, olhos de um azul tempestuoso e um
andar que lembrava o deslizar das águas tranquilas, Elara era considerada, por
todos os padrões, uma princesa perfeita.
Exceto
por um detalhe: ela nunca se sentiu parte daquele papel.
Enquanto
a dama de companhia, a simpática e falante Mirna, arrumava os vestidos no
armário, comentou sem conter a empolgação:
— Três
príncipes! Três, Alteza! Dizem que cada um é mais belo que o outro! E
poderosos! Um deles tem um exército pessoal com mais de mil homens! Já pensou?
Elara
sorriu de leve, educada como sempre, mas por dentro... uma brisa fria percorreu
sua espinha.
— É, já
pensei... — respondeu, tentando esconder a inquietação na voz.
Desceu as
escadas de mármore, sendo saudada com reverências e sorrisos ensaiados. O salão
real estava ornamentado com flores frescas, tapeçarias luxuosas e banquetes já
sendo preparados — tudo sem seu pedido ou consentimento. O rei e a rainha
pareciam mais jovens, animados com a possibilidade de uma aliança. Mas o olhar
de Elara passeava por tudo aquilo como quem vê uma peça de teatro da qual foi
escalada contra a vontade.
Na
antessala, os mensageiros anunciavam a chegada do primeiro pretendente.
—
Príncipe Alderan, do Reino da Fronteira do Norte! — ecoou o arauto, com pompa e
reverência.
Alderan
entrou com a confiança de quem sabe que a beleza abre portas. Era alto, de
olhos escuros e intensos, sorriso perfeitamente desenhado. Suas vestes eram de
um vermelho profundo, e trazia no peito o símbolo de seu reino: um falcão
dourado sobre o gelo. Fez uma reverência impecável e dirigiu-se diretamente à
princesa.
— Alteza
Elara, dizem que as flores da primavera se envergonham diante de sua beleza.
Vim para comprovar.
Elara
riu, dessa vez genuinamente — não pela galanteria, mas pela previsibilidade.
Quantas vezes ela já ouvira algo semelhante? Ainda assim, respondeu com
gentileza:
— Então
me diga, Príncipe, o que acontece com as flores do outono?
Alderan
sorriu, um pouco confuso, sem saber se era uma provocação. Respondeu qualquer
coisa sobre folhas douradas e colheitas, tentando manter o charme. Mas Elara já
havia notado: ele era um poeta de frases prontas. Bonito, sim. Encantador,
talvez. Mas havia algo de plástico ali. Como uma rosa que não exala perfume.
O segundo
a chegar foi Lysian, das Ilhas de Bruma. Um príncipe diferente, de feições
suaves, olhos tristes e passos calmos. Carregava consigo um livro de poemas
antigos e falava pouco, mas quando falava, suas palavras soavam como música.
Elara se interessou mais por ele — havia profundidade, mas também um peso.
Lysian parecia carregar o mundo nas costas. Falou-lhe de arte, de estrelas, de
como o mar de sua terra parecia cantar em noites sem lua.
— E o que
o mar canta? — perguntou ela, curiosa.
— Que a
liberdade é um canto que muitos não conseguem ouvir.
Essas
palavras ecoaram no coração de Elara como um sussurro íntimo. Mas ao mesmo
tempo, havia algo em Lysian que a fazia hesitar — um tipo de melancolia que
parecia pedir companhia, não parceria. Como se ele esperasse que ela o salvasse
de si mesmo. E Elara não queria mais ser salva, nem salvadora.
Então
veio Cassiel, o último dos três. Guerreiro, forte, herdeiro de terras vastas e
respeitado por seu povo. Tinha olhos dourados e um jeito imponente de se mover.
Cumprimentou o rei com firmeza, fez um gesto controlado para a rainha e encarou
Elara com a certeza de quem acredita ter encontrado uma peça perfeita para seu
tabuleiro.
— Não
pretendo encantá-la com palavras — disse ele —, mas posso lhe oferecer
segurança, lealdade e um trono ao meu lado. Um império a ser governado.
Elara
manteve o olhar firme.
— E amor?
— perguntou, sem desviar o olhar.
Cassiel
deu de ombros, como quem considera essa questão secundária.
— O amor
vem com o tempo, se formos sábios.
A
princesa inclinou a cabeça, como quem escuta uma ideia absurda com respeito.
Ela entendeu: Cassiel queria uma rainha, não uma mulher. E ela era as duas
coisas, embora ainda não soubesse bem o que fazer com isso.
Naquela
noite, enquanto o castelo celebrava discretamente a chegada dos príncipes,
Elara se recolheu em silêncio. Recusou o jantar, dispensou as damas e acendeu
uma vela na pequena lareira do quarto. Sentou-se no parapeito da janela e
encarou a lua cheia.
Os
pretendentes eram incríveis aos olhos do reino. Qualquer uma ficaria
lisonjeada. Mas ela não se sentia escolhida — sentia-se cercada.
Olhou
para o vitral antigo e, como numa repetição encantada, o brilho prateado
começou a atravessar o desenho da lua. E então, outra vez, como se o vento lhe
soprasse o coração:
Ouviu novamente “Você não precisa se casar.”
Dessa
vez, ela não ignorou. Não afastou o pensamento. Apenas fechou os olhos... e
permitiu que o vazio falasse. E ele falou.
Não era
noiva.
Não era
mercadoria de alianças.
Não era
destino de ninguém.
Era
apenas Elara.
E estava
começando a escutar sua própria voz — ainda frágil, ainda temerosa, mas real.
E quando
uma mulher começa a escutar a si mesma, o mundo inteiro precisa se preparar.
🌙 Capítulo 2 – A Noite em Que Ela Não Dormiu
O
silêncio do castelo, àquela hora, era como um véu pesado sobre os ombros da
princesa. Não havia mais risos, nem passos apressados pelos corredores, nem
música ecoando das salas douradas. Tudo repousava — menos ela.
Elara
caminhava descalça pelo quarto, os pés afundando no tapete macio como se o chão
quisesse abafar seus passos e pensamentos. Os três príncipes já haviam sido
acomodados em alas diferentes do castelo, e os conselheiros reais comemoravam
nos bastidores. Para todos, era uma questão de tempo até que ela escolhesse um
deles. Talvez Cassiel, pelo poder. Ou Alderan, pela beleza. Quem sabe Lysian,
pelo romantismo. O futuro estava servido num prato de ouro diante dela — e,
ainda assim, parecia intragável.
Ela se
aproximou do espelho alto, de moldura entalhada em carvalho, o mesmo que usava
desde a adolescência. Encarou seu reflexo em silêncio. Não havia nada fora do
lugar — os cabelos cuidadosamente trançados, a pele de porcelana, o vestido
branco bordado à mão que usava antes de dormir. Era tudo perfeito. Impecável.
Inalterável.
E era
isso que a sufocava.
Ela
encostou a testa no espelho e fechou os olhos.
— Quem é
você, Elara? — sussurrou. — Além da filha do rei, além da pretendente ideal,
além do rosto nos retratos.
As
paredes não responderam. Nem o espelho.
Mas
dentro dela, uma faísca começou a arder.
Lembranças
da infância vieram como fantasmas gentis. Quando pequena, Elara subia nas
árvores do jardim secreto com os joelhos ralados, sem se importar com os gritos
das amas. Gostava de correr atrás de borboletas, ler escondida nas bibliotecas
antigas do palácio, e inventar histórias com os criados da cozinha, que lhe
contavam lendas do povo com mais verdade do que qualquer lição de etiqueta.
Naquele tempo, ela ainda era inteira. Ainda era livre.
Mas,
pouco a pouco, como um vestido que vai apertando aos poucos, sua liberdade foi
costurada em regras, títulos e expectativas.
E agora,
aos vinte e três anos, estava prestes a dizer sim a um homem — qualquer um
deles — não porque amava, mas porque era a hora. Porque o reino esperava.
Porque era o que se fazia.
Mas
dentro dela, algo dizia: “não é isso”.
Ela puxou
uma manta leve e saiu pela porta dos fundos do quarto, atravessando um corredor
escondido que levava ao topo da Torre da Lira. Ninguém mais subia ali. Era um
espaço esquecido, onde instrumentos antigos jaziam empoeirados, e o tempo
parecia desacelerar. Era seu refúgio secreto desde os catorze anos, onde podia
pensar sem ser ouvida, existir sem ser observada.
Sentou-se
no chão de pedra fria, abraçada às pernas, e observou o céu através das frestas
na parede. O vento noturno lhe acariciava o rosto como mãos de uma mãe que
nunca teve coragem de dizer: “viva por você”.
Ali, no
escuro, ela chorou. Não um choro dramático, mas um soluço calado, daqueles que
não pedem consolo — apenas presença.
Chorou
por tudo o que engoliu.
Pelas
vezes em que disse "sim" querendo dizer "não".
Pelas
palavras engolidas nos banquetes.
Pelas
decisões tomadas em seu nome.
E chorou
por ainda não saber o que fazer com essa nova voz que gritava dentro dela.
Foi então
que se lembrou de um livro.
Um
caderno antigo, de capa azul desbotada, que sua avó escondia atrás das estantes
proibidas da biblioteca. Sua avó, Rainha Thalía, era uma mulher adorada pelo
povo, mas temida por desafiar tradições. Diziam que, nos primeiros anos de seu
reinado, ela ameaçou abdicar quando tentaram lhe impor um casamento político.
Acabou cedendo, por amor ao povo. Mas jamais deixou de escrever sobre o que
sentia — e escondia tudo naquele diário.
Elara
correu até a biblioteca, sem se importar com a hora ou com os olhos espiando
pelas frestas. Procurou com as mãos trêmulas entre os livros antigos até
encontrar o que buscava. Estava lá. Intocado, com o selo da rosa de vento
gravado à mão.
Sentou-se
no chão e folheou as páginas, onde a caligrafia firme da avó narrava sonhos,
dúvidas, raivas, alegrias... e uma coisa que Elara nunca tinha lido em voz
alta:
“Há um
mapa dentro de nós. Um mapa que ninguém ensina a ler. Cada decisão que tomamos
contra nossa vontade, nos afasta dele. Cada escolha autêntica, nos aproxima do
centro. O problema é que nem todo mundo quer chegar lá. Alguns preferem ser
bússola para outros e nunca encontrar a si mesmos. ”
Elara
releu aquela frase três vezes.
“Um mapa
dentro de nós...”
Era isso
que ela precisava. De um mapa. De direção. De permissão para procurar algo que
nem sabia o nome. Fechou o diário com reverência, como quem guarda um segredo
sagrado. Levou-o consigo até o quarto, deitou-se com o caderno ao peito, e
mesmo sem conseguir dormir, sentiu uma centelha de paz.
A noite
passou lentamente.
Mas,
naquela insônia, Elara não estava mais perdida. Pela primeira vez, ela estava
acordada — não só no corpo, mas na alma.
E quando
o sol finalmente beijou os telhados do palácio, a princesa que todos esperavam
que dissesse "sim", já começava a arquitetar o seu primeiro “não”.
✨ Capítulo 3 – O Mapa da Alma
O castelo
acordou com seus sons habituais: o bater das panelas nas cozinhas, o vaivém de
servos pelas alas principais, as notas apressadas do alaúde vindo da sala de
música. Mas, para Elara, aquele dia não começava como outro qualquer. Pela
primeira vez, ela não se vestiu segundo o protocolo do dia — ignorou os
vestidos dispostos por Mirna e escolheu uma túnica leve, simples, confortável.
Como se já sentisse, sem saber como, que a rigidez que a cercava estava prestes
a ser desfeita.
Ela
prendeu os cabelos em uma trança única e apertou contra o peito o diário da
avó, que havia lido por horas à luz da vela até o sono finalmente vencer. As
palavras de Thalía ecoavam em sua mente como um feitiço. Um mapa dentro de nós.
Escolhas autênticas. Centro. Nada disso estava nos livros de história que os
tutores a obrigaram a decorar. E, ainda assim, parecia mais verdadeiro do que
tudo o que aprendera.
Decidida,
Elara voltou à biblioteca. O espaço era amplo, cheio de sombras e cheiros
antigos, como se o tempo tivesse ali se esquecido de passar. Percorreu os
corredores como quem procura uma relíquia perdida. Subiu numa escada estreita
de madeira até o nível mais alto, onde quase ninguém ia. E lá, entre enciclopédias
de guerra e registros do reino, encontrou um livro de capa de couro
envelhecido, sem título. Dentro, uma única folha dobrada. Era um mapa.
Mas não
era um mapa comum.
Não havia
reinos, fronteiras ou estradas.
O traçado
era orgânico, quase instintivo — uma espiral que se entrelaçava com símbolos
antigos: uma flor aberta, uma chave, um coração rachado, um espelho partido. No
centro, em letras quase apagadas, lia-se:
“Para
quem deseja encontrar a si mesma, siga os quatro cantos de sua alma. Cada um
guarda uma chave. Apenas com todas elas, o portal será revelado.”
No canto
inferior, em tinta dourada quase invisível, o brasão da rainha Thalía. Era
dela. Elara estava segurando um pedaço da alma de sua avó. E talvez… um pedaço
da sua própria.
Na parte
de trás do mapa, um nome escrito à mão:
“A
Jornada Interior: Reino das Sombras Dóceis – Primeiro Caminho.”
Elara
correu os olhos pelo desenho até encontrar a inscrição em forma de símbolo, um
círculo escuro e suave. “Sombras Dóceis” — que nome era aquele? Soava como
poesia. Mas sentia em seu peito que era mais do que uma metáfora.
E foi
então que lembrou de algo.
No fim do
jardim dos fundos do palácio, havia um portão esquecido, escondido por heras e
roseiras que ninguém mais cuidava. Diziam que dava para os campos abandonados,
mas havia boatos de que, anos atrás, a Rainha Thalía costumava sair por ali às
escondidas. Diziam que ela ia “meditar”, ou “conversar com o povo”. Elara agora
sabia que aquilo era só parte da verdade.
Escondeu
o mapa em um bolso interno da túnica e desceu pela lateral do castelo, fingindo
uma caminhada matinal. Cumprimentou os guardas com um aceno sereno, colheu uma
flor no jardim como quem estivesse distraída — e logo depois desapareceu entre
as árvores.
Ao chegar
ao portão coberto de trepadeiras, sentiu o coração acelerar. A fechadura estava
quebrada, o ferro enferrujado, mas ainda era possível abri-lo com um pouco de
força. Empurrou o portão com as duas mãos, ouvindo o rangido protestar como um
aviso: “a partir daqui, você pisa fora do caminho traçado”.
Ela não
hesitou.
Os campos
além do muro estavam silenciosos, com uma vegetação rasteira e um céu de nuvens
preguiçosas. A brisa ali era diferente. Mais fresca. Mais livre. Cada passo
parecia mais leve do que o anterior, como se tirasse dos ombros pesos que nem
sabia que carregava.
Elara
seguiu o desenho do mapa, que agora parecia vibrar em sua mão. Os símbolos
pareciam mudar de cor conforme o sol se movia. Era como se o papel estivesse
vivo. A trilha a levou até uma clareira onde o tempo parecia suspenso. No
centro, uma árvore imensa, de tronco espesso e galhos retorcidos. Ao redor,
bancos de pedra e pequenas figuras esculpidas em madeira — rostos femininos,
com expressões serenas e olhos fechados.
Ela se
aproximou e sentiu algo estranho: familiaridade. Como se aquele lugar a
reconhecesse.
Sentou-se
diante da árvore e abriu novamente o diário de Thalía. Havia uma página marcada
com uma pétala seca. Ali, as palavras da avó voltaram como conselho e profecia:
“Sombras
dóceis são aquelas que aceitamos calar dentro de nós. Elas nos servem em
silêncio, mas adoecem nossa essência. O primeiro passo é ouvi-las. Ouvir sem
medo. Ouvir sem julgar. Só assim o mapa se revela.”
Fechou os
olhos.
E ouviu.
No fundo
do seu silêncio, começaram a surgir vozes. Pequenas, suaves, tímidas. Vozes que
diziam: “eu não queria isso”, “eu tenho medo”, “eu quero mais”, “eu existo”.
Vozes dela mesma, que por tantos anos foram sufocadas. Memórias de quando
engoliu choro, de quando sorriu por obrigação, de quando disse “sim” para
evitar a decepção de alguém.
Lágrimas
escorreram, mas não eram tristes. Eram como o degelo de um rio que ficou tempo
demais paralisado.
E então,
do chão, entre as raízes da árvore, algo emergiu. Um pequeno objeto envolto em
tecido de seda: uma chave. De ferro antigo, com um entalhe em forma de estrela.
Elara a
pegou com reverência, sabendo instintivamente: era a primeira chave da jornada.
Ela
guardou o objeto junto ao mapa, se levantou lentamente e olhou em volta. A clareira
parecia mais iluminada. As figuras de madeira sorriam discretamente.
Ao deixar
aquele lugar, Elara não era mais a mesma.
Ainda não
sabia o destino.
Mas já
conhecia o caminho.
🌲 Capítulo 4 – A Floresta das Vozes Perdidas
A manhã
era clara quando Elara deixou a clareira. O vento soprava com suavidade, e
havia um tipo de paz no ar que fazia as folhas sussurrarem como se soubessem
segredos antigos. A chave conquistada pesava pouco nas mãos, mas muito na alma.
Era como um selo: a jornada havia começado.
O mapa,
guardado com cuidado entre as dobras do diário de sua avó, parecia mais
vibrante. O traçado que levava ao segundo destino brilhava como se tivesse sido
desenhado com a luz do sol: A Floresta das Vozes Perdidas.
Durante
horas, Elara caminhou por campos abertos e trilhas pouco marcadas. Não
encontrava ninguém, mas também não sentia medo. Era como se o mundo, naquele
trecho, existisse apenas para ela. Finalmente, avistou a linha escura das
árvores adiante, como um manto verde profundo que cobria o horizonte.
Ao se
aproximar da entrada da floresta, sentiu um calafrio. Não era de frio — era de
pressentimento. As árvores ali eram altas, de troncos grossos e copas tão
fechadas que mal deixavam o sol entrar. Cada passo que dava parecia afundar no
chão coberto de folhas secas, que rangiam com o som do passado.
E foi
então que começou a ouvir.
No
início, pensou ser apenas o vento. Mas logo as vozes se tornaram claras —
suaves, femininas, vindas de todas as direções. Algumas sussurravam em
desespero. Outras cantavam em lamento. Havia risos engasgados, palavras
partidas, frases interrompidas. E todas diziam coisas semelhantes:
— “Se eu
tivesse dito não…”
— “Meu amor era meu, e me tomaram…”
— “Eu fui rainha de mim mesma, mas ninguém aceitou…”
— “Fui chamada de rebelde, quando só queria respirar…”
Elara
parou. O coração acelerado, os olhos arregalados. O som vinha das árvores, dos
galhos, do chão. Como se a floresta estivesse viva — ou, talvez, como se
aquelas vozes tivessem sido enterradas ali e agora chamassem por testemunhas.
Seguiu
adiante, tocando as cascas das árvores com cuidado. Em uma delas, viu entalhado
um nome: Maeve. Em outra, Selene. Mais adiante, Brina, Rose,
Noor…
Nomes de
mulheres.
Muitas.
Elara
compreendeu: aquelas vozes pertenciam a mulheres esquecidas. Mulheres que, como
ela, um dia se calaram. Suas histórias não estavam nos livros, nem nos hinos do
reino. Estavam ali — enraizadas, ecoando no tempo, à espera de quem ousasse
escutá-las.
Mais
adiante, encontrou um pequeno altar feito de pedras brancas. No centro, havia
um pergaminho envelhecido. Com dedos trêmulos, Elara o desdobrou e leu:
“Aqui
jazem vozes que nunca foram ouvidas.
Aqui florescem histórias que nunca foram contadas.
Quem caminha por entre nós, deve nos honrar.
Escute. Anote. Compartilhe.
Torne visível o que foi esquecido.”
Ao lado
do pergaminho, repousava uma pena antiga e uma pequena caderneta. Elara
entendeu sem precisar de instruções: era hora de escrever.
Sentou-se
em silêncio, e as vozes se intensificaram. Começou a anotar o que ouvia.
Histórias curtas, mas profundas. Uma mulher que foi forçada a abandonar seu
amor por causa de um título. Outra que preferia estudar astronomia a casar-se
com o duque da capital. Outra ainda, que fugiu para viver sozinha na floresta,
e foi chamada de louca — mas era livre.
Enquanto
escrevia, lágrimas escorriam silenciosas. Elara não sabia por que chorava.
Talvez porque sentia que aquelas histórias também eram dela. Ou talvez porque
percebia, pela primeira vez, quantas vidas haviam sido apagadas por medo, por
controle, por tradição.
Escreveu
por horas, talvez por um dia inteiro. O tempo na floresta não seguia os
ponteiros do castelo. Ali, o tempo seguia o ritmo do coração. E o dela, naquele
instante, batia com uma clareza nova.
Quando
terminou, devolveu o caderno ao altar. Tocou cada pedra como um gesto de
gratidão. E, ao se levantar, algo brilhou entre as raízes próximas.
Outra
chave.
Dourada,
com o entalhe de uma pena.
Pegou-a
com reverência e sentiu a energia quente na palma da mão. Duas chaves. Duas
verdades.
Ao sair
da floresta, as vozes começaram a silenciar — não como um fim, mas como um
descanso. Agora que tinham sido ouvidas, podiam repousar.
Elara
caminhou de volta à trilha com um novo entendimento. Ela não era a primeira a
se sentir presa entre expectativas e desejos. Não era a única a buscar
liberdade onde disseram que não havia escolha. Ela era parte de uma linhagem de
mulheres silenciadas — e também era a que, agora, escolheria falar.
O céu
começava a se enfeitar com tons de violeta, e as primeiras estrelas surgiam no
alto. Elara olhou para o horizonte e sorriu. Pela primeira vez em anos, não
sabia exatamente onde estava indo.
E isso
era libertador.
🪞 Capítulo 5 – O
Espelho que Ri
O
terceiro caminho traçado no mapa levava Elara a uma região marcada por colinas
suaves e riachos cantantes. A natureza ali era viva de um jeito peculiar — como
se o mundo tivesse um senso de humor. Os pássaros pareciam cantar de propósito
fora de compasso. As árvores cresciam tortas, mas com elegância. Até o vento
soprava com certa malícia, levantando a barra do vestido de Elara só para
depois acariciar seu rosto em pedido de desculpas.
Ela
caminhava sorrindo sozinha, o que era novidade. Até então, a jornada tinha sido
repleta de silêncio, memórias, revelações. Mas agora, algo a envolvia como uma
brisa de leveza — talvez o fato de ter começado a carregar menos peso. Ou
talvez porque, pela primeira vez, estava aprendendo a rir das próprias sombras.
No fim da
trilha, encontrou um vilarejo encantador e completamente incomum. As casas eram
baixas, com telhados de palha colorida. As portas, todas arredondadas. No
centro da vila, uma fonte em forma de gargalhada — literalmente, uma escultura
de um rosto sorridente, de onde brotava água cristalina pelas bochechas
risonhas.
Elara foi
recebida por uma mulher de cabelos espetados, avental azul e um colar feito de
botões. Seu nome era Dira, e sua voz parecia o som de uma chaleira prestes a
ferver.
— Ah,
chegou! Sabíamos que viria. A risada avisou — disse, dando um leve tapa na
coxa.
— A
risada…? — Elara tentou entender.
— Sim,
minha flor! Aqui, as coisas riem antes de acontecer. O mundo não gosta de
surpresa mal-humorada. Venha, venha. Você está com cara de quem precisa de um
bom espelho.
Antes que
pudesse perguntar o que aquilo significava, foi levada pelas ruelas do vilarejo
até uma casinha redonda, com placas engraçadas penduradas do lado de fora:
“Perigo: Você pode se encontrar aqui” e “Cuidado com o excesso de lucidez”.
Dentro da
casinha havia apenas um grande espelho, emoldurado por madeiras entalhadas com
desenhos cômicos — corações desajeitados, narizes enormes, coroas pendendo das
cabeças. Dira apontou para o espelho e disse com solenidade dramática:
— Olhe e
veja o que não espera.
Elara
hesitou. Mas se aproximou.
No
início, viu apenas seu reflexo. Cansada, um pouco suja da viagem, com os
cabelos despenteados. Mas logo, o espelho começou a mudar. Sua imagem se
distorceu, como se risse de si mesma. Seus olhos aumentaram, o nariz se
esticou, a boca sorriu de um jeito torto. Depois, a cena mudou — e ela viu a si
mesma aos seis anos, comendo mel diretamente do pote escondida no jardim.
Depois, aos doze, tentando imitar a postura da mãe com uma almofada na cabeça e
tropeçando logo em seguida. Depois, aos dezessete, chorando por um elogio que
nunca recebeu.
O espelho
não zombava. Não era cruel. Era... honesto. E gentil.
Era como
se dissesse: “Você é ridícula às vezes. E está tudo bem.”
Elara
sentiu um riso subir pela garganta. Primeiro contido. Depois, irreprimível.
Gargalhou como não fazia há anos. Gargalhou até perder o equilíbrio e cair
sentada no chão, as mãos no rosto, os olhos molhados de tanto rir. Dira apenas
observava, com um sorriso satisfeito.
— Pronto
— disse ela. — Agora você pode começar a se amar de verdade.
— Porque
me vi... ridícula?
— Porque
se viu humana.
Elara
levantou-se com um brilho novo nos olhos. Algo dentro dela havia mudado — como
se, ao rir de suas vaidades, tivesse desarmado o último bastião de perfeição
que a mantinha presa. Ali, diante daquele espelho, entendeu que não precisava
ser exemplar. Nem sempre digna. Nem sempre certa.
Podia ser
real. E isso bastava.
Dira a
levou até a saída da vila e, com um abraço apertado, colocou em sua mão uma
terceira chave. Essa era prateada, com o símbolo de um olho fechado.
— Para
quando quiser se ver... de verdade — disse a mulher, piscando um dos olhos.
Ao deixar
o vilarejo, Elara sentia-se leve. Não apenas no corpo, mas na alma. A estrada à
frente não parecia mais assustadora. Ao contrário, parecia dançar com ela. E
ela dançava de volta, como quem começa a caminhar sem medo do tropeço.
Enquanto
o sol descia no horizonte, a princesa que todos esperavam que fosse perfeita,
agora sabia: ser imperfeita era, talvez, a mais bela forma de liberdade.
❤️🔥 Capítulo
6 – O Guardião do Coração Selvagem
Após
deixar o vilarejo que a ensinou a rir de si mesma, Elara sentia os passos mais
firmes. Era como se seu corpo tivesse se reajustado por dentro. Não apenas
caminhava — ocupava o caminho. Não apenas buscava respostas — estava pronta
para confrontá-las.
No mapa,
o próximo destino se chamava: “Terras do Coração Selvagem”.
O nome
soava como tambor.
A
paisagem começou a mudar à medida que avançava. As colinas se tornaram mais
íngremes. O ar mais seco. O solo quente e rachado, como se escondesse alguma
emoção contida sob a terra. O céu parecia mais próximo, de um azul profundo e
sem nuvens, como um olho que observa tudo, sem julgamento.
Elara
seguiu em silêncio, até que a trilha acabou. Diante dela, uma ravina de pedras
vermelhas. No centro, uma fenda estreita, por onde se podia passar apenas
sozinha — sem bagagem, sem armaduras. Apenas ela.
Sem
hesitar, entrou.
A
passagem era escura, estreita, quase opressora. Mas a cada passo, o caminho se
alargava até se abrir em uma clareira selvagem, cercada por montanhas. No
centro, um círculo de pedras negras rodeava um fogo vivo, que queimava sem
consumir nada.
E ao lado
das chamas, alguém a esperava.
Não era
homem, nem mulher. Era... algo ancestral. Alto, com pele da cor da terra, olhos
como brasas. Estava vestido com peles antigas e portava um bastão entalhado com
símbolos que pareciam pulsar. Era o Guardião. O protetor daquele lugar.
Ele não
sorriu, nem falou. Apenas ergueu o bastão e apontou para o fogo.
— O que
arde aí? — Elara perguntou, sentindo o calor na pele.
— O que
você tem medo de desejar — respondeu o Guardião, pela primeira vez, com uma voz
grave como trovão contido.
Elara deu
um passo à frente. O fogo tremeluzia, e dentro dele, começou a ver imagens:
ela, diante de uma multidão, falando o que sentia com liberdade. Depois,
cavalgando sozinha em terras desconhecidas, o rosto cheio de alegria. Depois,
em uma pequena casa no meio do campo, com livros, flores e uma xícara de chá,
dançando descalça na sala.
Ela viu a
si mesma... sem coroa.
Viu a
mulher que existia sem o título de princesa. Que amava sem precisar de
permissão. Que escolhia o que vestir, o que comer, para onde ir. Viu a mulher
que sonhava não com castelos, mas com horizontes.
O fogo
pulsou mais forte.
— Você
quer liberdade — disse o Guardião.
— Quero
ser minha — respondeu Elara, sem hesitar.
— Está
disposta a perder o que te deram... para ganhar o que é seu?
Elara respirou
fundo. Pensou nos títulos. Nas expectativas. Na imagem cuidadosamente esculpida
ao longo dos anos. E então, como quem larga uma espada para segurar uma flor,
respondeu:
— Sim.
O
Guardião ergueu o bastão e golpeou o chão com força. Uma labareda subiu do fogo
e se curvou diante de Elara. Quando se apagou, no chão restava uma última chave
— dourada e vermelha, em forma de chama.
— Esta é
a chave do querer — disse o Guardião. — A mais perigosa. E a mais verdadeira.
— Por que
perigosa?
— Porque
quem sabe o que deseja, não pode mais fingir que não sabe.
Elara
segurou a chave como quem segura o próprio coração. Pela primeira vez em toda a
sua vida, ela se sentia inteira. Não porque havia sido escolhida por alguém —
mas porque, finalmente, havia se escolhido.
O
Guardião desapareceu como fumaça, e o fogo se apagou com ele. A clareira ficou
em silêncio, mas dentro dela, uma nova chama se acendia — esta não queimava.
Iluminava.
Elara
deixou o círculo de pedras em direção à trilha que levava de volta ao mapa, com
as quatro chaves no bolso e uma nova certeza no peito: já não havia mais
retorno. Não porque não podia voltar, mas porque... não queria.
A
princesa que partiu buscando quem era além do trono, agora sabia que seu reino
mais precioso era aquele onde ninguém a governava além de si mesma.
E o
verdadeiro final — ou talvez, o verdadeiro começo — estava apenas começando.
🔑 Capítulo 7 – O Portal Esquecido
A sombra
do castelo nunca pareceu tão grande quanto naquele entardecer em que Elara
voltou para casa. As pedras antigas pareciam sussurrar histórias esquecidas, e
o vento carregava um perfume misto de flores silvestres e poeira antiga. Ela
caminhava mais leve, com as quatro chaves penduradas discretamente em um cordão
ao redor do pescoço — o peso delas, ao contrário do esperado, trazia uma
sensação de liberdade.
Ao
atravessar os grandes portões, os guardas, que antes a cumprimentavam com
aquela distância protocolar, olharam-na com algo diferente: não apenas
respeito, mas um brilho de curiosidade. Algo nela havia mudado. Ela não era
mais apenas a princesa destinada a casar; era uma mulher que trazia um segredo
— e uma promessa.
Elara
subiu as escadas até a biblioteca, agora seu refúgio e palco de tantas
descobertas. Deixou o diário da avó aberto sobre a mesa, com as páginas
marcadas, e examinou novamente o mapa misterioso. No centro da espiral, onde as
quatro chaves deveriam se encontrar, havia uma inscrição que antes não
conseguira decifrar:
“Quando
as chaves se unirem, o portal se abrirá — para quem ousar atravessá-lo, um novo
reino aguarda.”
Seu
coração acelerou.
Durante
semanas, entre reuniões com conselheiros que insistiam no casamento, cerimônias
e aparições públicas, Elara dedicava suas madrugadas a desvendar aquele enigma.
A cada encontro com as chaves, sentia uma conexão mais forte com sua avó, com a
força das mulheres que vieram antes dela, e com seu próprio poder escondido.
Foi
Mirna, sua fiel dama, quem primeiro percebeu o brilho diferente nos olhos da
princesa.
— Alteza,
o senhor conselheiro deseja vê-la — avisou.
— Espere,
Mirna — disse Elara, segurando uma chave. — Eu... estou perto de descobrir algo
importante.
Mas o
tempo era curto. Naquela noite, enquanto o castelo dormia, Elara se dirigiu ao
salão secreto que sua avó usava para meditação — um aposento escondido atrás de
uma estante móvel na biblioteca, cheio de símbolos antigos e pinturas que
ninguém jamais comentava em voz alta.
Ali, no
centro do salão, havia um pedestal de pedra com quatro encaixes — exatamente do
tamanho das suas chaves.
Ela
respirou fundo, colocou as chaves uma a uma nos espaços, sentindo cada clique
firme. A luz começou a brilhar de dentro do pedestal, e uma passagem secreta se
abriu lentamente na parede de pedra.
Era um
portal.
Um
corredor iluminado por tochas antigas conduzia para baixo, para um lugar
desconhecido.
Elara
hesitou por um momento. O peso da tradição, das expectativas, do futuro
incerto, tudo parecia querer puxá-la para trás.
Mas a voz
interior que a acompanhava desde o início da jornada falou mais alto:
“Você não
precisa se casar. Você pode escolher. Você pode ser inteira.”
Com o coração
em punho, ela entrou.
O
corredor levou a uma câmara subterrânea. No centro, uma fonte de luz pulsava —
não de magia comum, mas da força da alma feminina.
Nas
paredes, gravuras contavam histórias de rainhas que governaram com o coração,
de mulheres que desafiaram o destino para viver a si mesmas. Histórias que
nunca chegaram aos livros oficiais.
Ali
estava o legado da Rainha Thalía.
E o
convite para Elara: que ela pudesse ser mais do que uma princesa que escolhia
se casar.
Que
pudesse ser uma mulher que escolhe sua vida.
Ela tocou
a luz e sentiu uma onda de energia percorrer seu corpo. Lágrimas vieram, não de
tristeza, mas de alegria profunda. Porque naquele momento, ela compreendeu que
o verdadeiro trono era a sua liberdade — e que para sentar nele, não precisava
de um reino, nem de um marido. Apenas de coragem.
Ao subir
de volta à superfície, o sol já despontava no horizonte. Elara sabia que seu
próximo passo seria o mais difícil — contar a verdade para todos. Mas, agora,
ela não estava mais sozinha.
Ela
carregava as chaves do passado, da liberdade e do amor próprio.
E, acima
de tudo, carregava a si mesma.
🌟 Capítulo 8 – O Sim que Ela Escolheu
A manhã
do grande conselho amanheceu cinza, como se o céu antecipasse a tempestade —
não a das nuvens, mas aquela que se formaria no coração do castelo. Todos os
nobres, conselheiros e príncipes se reuniram na sala principal, cada rosto uma
mistura de expectativa e presunção. Afinal, aquele dia seria decisivo para o
futuro do reino — e para o futuro da princesa.
Elara
entrou com passos firmes, seu corpo vestido com um manto simples, porém
elegante, bordado com símbolos que descobrira na sua jornada: uma chave, uma
pena, uma chama e um espelho quebrado — representações das chaves que carregava
no peito, não penduradas num cordão, mas gravadas na alma.
O
silêncio caiu.
Os
olhares se voltaram para ela, alguns curiosos, outros desdenhosos.
— Hoje,
meu povo — começou ela, a voz firme, porém carregada de emoção —, venho dizer
algo que pode parecer estranho, ou até mesmo controverso. Mas é a verdade que
descobri ao longo da minha jornada.
Houve um
murmúrio.
— Não
escolherei nenhum dos príncipes para casar. — Sua declaração soou como um
trovão em meio ao murmúrio. — Não porque não sejam dignos, mas porque o
compromisso mais importante que tenho é comigo mesma. Sou filha deste reino,
sim, mas não serei prisioneira de expectativas alheias.
O
silêncio ficou pesado. Os conselheiros trocaram olhares. Os príncipes franziram
a testa.
— Como
assim, princesa? — perguntou Cassiel, a voz cortante. — Isso desafia tradições
que mantêm nosso reino unido.
— Desafia
sim — respondeu Elara, olhando para cada um deles —, mas também abre espaço
para uma nova forma de união. Uma união baseada na liberdade, no respeito e na
escolha consciente.
Ela
revelou as chaves que trazia — não como símbolos de poder, mas como provas da
sua busca por autenticidade.
— Estas
chaves — continuou — representam as vozes que escutei, os medos que enfrentei e
a coragem que encontrei dentro de mim. Eu convido todos vocês a ouvir suas
próprias vozes, a questionar seus próprios mapas. Pois um reino forte não é
aquele que prende sua princesa, mas aquele que a deixa voar.
Uma
senhora idosa, conhecida por sua sabedoria, levantou-se e disse:
— Sua
Alteza, você nos mostra uma nova forma de governar — aquela em que o coração e
a alma são tão importantes quanto as alianças políticas. É uma lição que todo
reino deveria aprender.
Os
príncipes baixaram a cabeça, talvez não por derrota, mas por reconhecimento da
verdade que ecoava naquelas palavras.
Elara
sentiu uma paz profunda. A tempestade que antecipava não veio com trovões ou
raiva, mas com uma silenciosa aceitação. O castelo mudava — e com ele, o futuro
de seu povo.
Ao final
da reunião, quando os corredores voltaram a encher-se de passos apressados,
Elara soube que seu caminho seria longo e cheio de desafios. Mas também que
jamais caminharia sozinha.
Ela havia
escolhido seu “sim”. Um sim à liberdade, ao amor próprio e à coragem de ser
quem verdadeiramente era.
E,
naquele dia, a princesa que escolheu não se casar se tornou a rainha do próprio
destino.
🌅 Epílogo – O Legado da Princesa Livre
O sol já
se punha no horizonte, tingindo o céu com tons de ouro e púrpura, quando Elara
subiu ao terraço mais alto do castelo. O vento brincava com seus cabelos,
livres como jamais haviam estado. Lá embaixo, o reino respirava uma nova era —
uma era em que as histórias de todas as mulheres começavam a ser ouvidas,
respeitadas, celebradas.
Ela
sorriu, sentindo o peso da coroa que nunca quis usar, mas que agora carregava
com outra força: a da liberdade conquistada, da verdade abraçada, do amor
próprio inabalável.
As chaves
que outrora buscou ainda pendiam ao pescoço, símbolos eternos de sua jornada —
e de todas as jornadas que ela sabia que ainda viriam.
Porque a
história da princesa que escolheu não se casar não é apenas dela.
É a
história de quem ousa ouvir a própria voz em meio ao ruído do mundo.
É a
história de quem escolhe ser inteira, imperfeita, corajosa.
E, acima
de tudo, é a história de quem sabe que o verdadeiro reino está dentro de si
mesma.
Com o
coração leve e os olhos brilhando, Elara deu um passo adiante — não em direção
a um trono, mas rumo ao infinito que ela mesma criaria.
E assim,
o legado da princesa livre começou a florescer — uma flor que jamais seria
trancada em jardins cercados por muros.
Ela se
tornou não só uma rainha, mas uma inspiração.
Para
todas as mulheres que ainda buscam seu próprio caminho.
Para
todas as princesas que sabem que o maior “sim” é aquele que escolhem para si
mesmas.
E para
todas nós, que aprendemos que o amor mais revolucionário é o amor por quem
somos — sem medo, sem desculpas, sem limites.

2 Comentários
Que história cheia de significados. Se encontrar e se permitir viver a sua verdade não é pra qualquer um. Achei muita sensibilidade. A história mostrou a jornada do autoconhecimento pela vida de uma princesa que, na verdade, representa a todos nós. Obrigada!
ResponderExcluirAhh, você não imagina como seu comentário aqueceu meu coração! 💖
ResponderExcluirÉ exatamente isso… essa princesa é um espelho de todos nós. Às vezes a jornada é solitária, mas quando nos permitimos viver a nossa verdade, algo muito bonito floresce. Obrigada por sentir junto comigo. Que você também continue se escolhendo, com coragem e amor.